quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O Advogado capítulo 1


Capítulo 1

Anastácia Stelle 

Arrumo, passo, cozinho, lavo, corro atrás de crianças quando a patroa
recebe visita, acumulo mil e uma funções e no final do mês, nem mil e
duzentos continhos eu levo para casa.
Casa essa que praticamente não vivo, ou melhor, chego tão esgotada
que apenas durmo, desmaio e vegeto após um longo dia de trabalho e mais
de duas horas de trânsito onde enfrento um ônibus lotado e um metrô que
me leva para o subúrbio. No final do dia sinto-me tão cansada, esgotada,
que meus dezoito anos tem o peso de no mínimo o dobro.
Eu sei que posso parecer uma garota que só murmura sobre a
exaustiva realidade, mas na verdade eu agradeço a sorte que tive ao
encontrar trabalho na casa da dona Dorothy Menezes, uma senhora que me
acolheu após a morte de minha mãe que trabalhou para sua família a vida
toda.
— Sonhando com a vida, Anastácia?
Assusto-me com a voz da minha patroa e por pouco não deixo a
vassoura cair no chão impecável todo no porcelanato importado.
— Nãoooo, senhora! Desculpa, eu só parei para respirar um pouco.
Ela me observa e educadamente caminha em minha direção.

— Não tem problema, eu apenas quero que você me faça um favor e
até te dispensarei mais cedo.
Recebo a melhor notícia que me faz flutuar de felicidade.
— Preciso que você vá em um lugar e leve um documento. Deixe
tudo como está, se arrume e em uma hora, meu motorista vai te levar.
Fico curiosa, mas não estou em condições de questionar.
— Então vou me arrumar agora mesmo. Licença, dona Dorothy.
Começo a caminhar completamente animada pois levar um
documento seja onde for, vai ser de qualquer forma uma diversão, um
desvio na minha rotina de cão.
— Carla, volte aqui.
Ah! Será que ela se arrependeu?
— Oi?
Paro de caminhar, viro-me em sua direção e observo a minha patroa.
— Deixei no quarto que você guarda as suas coisas, uma mala de
roupas que foi da minha filha, muitas são novas, você sabe como Patrícia é,
compra sem pensar, nunca usa e vocês são quase da mesma idade.
Realmente Patrícia é bem consumista e um pouco mais velha que eu.
— Tenho que concordar, senhora.
Acabo comentando e por esse motivo minha pele branquinha queima
de vergonha, mas minha patroa sorri, pelo jeito não ultrapassei tanto o
limite.
— Pois bem, separei para você algumas peças, espero que sirvam.
Ela ainda tem dúvida? Deus bem sabe o quanto preciso de roupas, já
que as minhas estão bem surradas e apertadas, pois desde que minha mãe se
foi, eu não sei o que é comprar uma blusa.

— Tem uma mala menorzinha com sapatos também, sei que você
calça o mesmo número da minha princesa.
Controlo-me para não pular de alegria, pois as roupas e sapatos da
Patrícia são super lindas, na verdade, perfeitas demais para minha realidade.
— Agora vá, não quero que se atrase.
Agradeço os presentes e me retiro, quase que correndo para o quarto,
precisava desesperadamente ver o que ganhei.
— Para onde vai assim, delícia?
A voz perturbadora do motorista Barreto me faz interromper os
passos ao mesmo tempo que sinto o meu sangue fervendo.
— Dá para parar de me chamar assim? Eu não estou mais
suportando.
Ele se aproxima ainda mais praticamente me deixando sem passagem
e me forçando a empurrá-lo.
— Difícil não te chamar assim. Já se olhou no espelho, Carla? Você é
maravilhosa.
Reviro os olhos cansada e no limite, empurro Barreto. Logo depois
sigo ansiosa para o quarto até alcançar a mala que está em minha cama e
enlouqueço com o que vejo.
A quantidade das roupas suprirá minhas necessidades pelos próximos
três anos já que economizo bastante e os cinco pares de sapatos lindos, se
usados de forma bem alternadas, também terão uma boa durabilidade. Sem

falar na beleza de todas as peças, são de pirar qualquer uma e pouco me
importa se a moda já passou, pois são perfeitas.
A cada roupa que vou retirando da mala, meus olhos brilham, a
maciez dos tecidos, a delicadeza dos cortes, os tons mais perfeitos que já vi,
deixam meus olhos marejados, eu com certeza nunca ganhei algo parecido e
para minha surpresa, tem até vestido de festa.
Fico ansiosa para provar cada uma das peças, mas me lembro do meu
compromisso, então me levanto correndo, tomo um banho gostoso e volto
para o quarto, para pegar minha roupa, mas uma ideia surge. Por que não
usar algo novo?
Escolho um vestido azul um pouco justo, com um detalhe de um
tecido mais solto que tem no comprimento na altura da coxa, um pouco
acima do joelho. Para completar, escolho uma sandália bege, extremamente
delicada e me sinto outra, se não fosse por minhas olheiras que deixam ao
redor dos meus olhos um pouco avermelhados, poderia me passar por uma
garota chique da alta sociedade.
Tento disfarçar um pouco minha aparência cansada com uma leve
maquiagem, ajeito meus longos cabelos com as pontas dos dedos, passo um
brilho labial e assim, sinto-me pronta para fazer o favor a minha patroa.
Antes de sair, guardo na mala as peças que na ansiedade espalhei pela
cama, fecho e saio arrastando ambas, por sorte são de rodinhas.
— Puta merda, como você fica ainda mais gostosa fantasiada de
patroa.
Mais uma vez Barreto passa dos limites, tento controlar meus nervos
e passo direto por ele.
— Ei, calma delícia. Não precisa fugir.
Ele corre e me ultrapassa.
— A patroa mandou vir te encontrar por causa das doações que você
recebeu, vou te levar no tal lugar para você entregar o documento e depois

em sua casa. Agora me dê as malas, vou levar para o carro. Enquanto isso,
vá ver a chefa, ela te espera no gabinete.
Assim faço o caminho a passos largos mesmo que receosa por não
saber me equilibrar tanto nos saltos e vou de encontro a Dorothy.
Assim que entro no escritório, percebo nos olhos da minha patroa o
espanto ao me ver e demoradamente passeia o seu olhar com um tom
curioso por toda minha produção.
— Bem, já vi que você se agradou das roupas e devo admitir que
essa ficou ótima.
Sinto-me ainda mais agradecida com seu elogio.
— Obrigada. E a senhora não imagina o quanto gostei, nem tenho
como agradecer.
Dorothy se levanta sem me olhar e caminha até um armário onde
mexe em alguns documentos.
— Na verdade, tem sim. Por não estar me sentindo muito bem, você
vai me fazer um favor. Quero que entregue esse documento diretamente nas
mãos do *Dr. Adriano, ele já está te aguardando.

* O título de doutor foi concedido aos advogados por Dom Pedro I, em 1827. É também uma
questão de costume no Brasil, usada no livro.

Continua....

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